domingo, 22 de dezembro de 2019

Desigualdade salarial: um retrato incompleto

No passado mês de novembro assinalou-se o Dia Europeu da Igualdade Salarial entre homens e mulheres. Tendo em conta os últimos dados do Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP), cujos cálculos são baseados nas informações fornecidas pelas empresas, a desigualdade salarial, ainda que timidamente, tem vindo a diminuir, verificando-se que em 2017 a remuneração mensal base dos homens era de 949,2 euros, comparativamente aos 83,1 euros a menos da remuneração mensal base das mulheres. Ou seja, evidencia-se uma disparidade salarial média de 14,8%, o que não deixa de ser uma boa notícia quando nos recordamos dos 18,5% que se verificavam em 2012.
         Mas, engane-se quem apenas vê o lado positivo da evolução nos números. Numa perspetiva geral, é certo que as políticas governamentais causaram impactos nas disparidades salariais, estimulados inicialmente no período de crise, pela desvalorização ocorrida nos salários dos indivíduos com remunerações mais elevadas, ou seja, afetando maioritariamente os homens, e, posteriormente, no período de retoma da economia, pelo aumento gradual do salário mínimo nacional, afetando os indivíduos cujos salários são mais baixos, ou seja, as mulheres. Tal reverteu-se num decréscimo da desigualdade salarial, nos últimos 4 anos, contudo não podemos ignorar que o problema persiste assombrosamente. Acresce que as diferentes formas de apuramento de dados evidenciam um desacerto de números que nos fazem questionar a realidade.
         Considerando o indicador utilizado pelo Eurostat, o unadjusted gender pay gap, que agrega todos os indivíduos que trabalham por conta de outrem em empresas com 10 ou mais pessoas, avaliando a diferença entre os valores brutos médios, por hora, ganhos por homens e mulheres, constata-se que, comparativamente aos parceiros comunitários, Portugal apresenta uma taxa de desigualdade salarial inferior à média da União Europeia (UE), que se situa nos 16%, quando consideradas as estatísticas do GEP. Já tendo em conta as estatísticas europeias, Portugal apresenta uma taxa de 16,3%, ligeiramente acima da UE. As taxas mais elevadas foram observadas na Estónia (25,6 %), na República Checa (21,1 %), na Alemanha (21 %), no Reino Unido (21,8 %) e na Áustria (19,9 %). Contudo, é de destacar que a taxa de desigualdade salarial na UE é elevada, portanto qualquer comparação entre estados membros implica que sejamos cautelosos.
         Interessa então olhar para as estatísticas com uma atitude crítica, pois só assim entenderemos que todo este cenário resume um progresso lento que está longe de ser um equilíbrio e que, mais do que isso, implica que a lei esteja a ser violada. Logo, há uma questão que, inevitavelmente, se põe: serão os números um retrato completo da realidade que esta problemática enfrenta? Focando-nos no conceito de unadjusted gender pay gap, facilmente percebemos que este instrumento exibe lacunas, uma vez que existe um número significativo de mulheres que não são abrangidas nestes cálculos. Ora, note-se que seria essencial que o estudo fosse abrangente aos 12% de mulheres que trabalham por conta própria, ou ainda àquelas que trabalham por conta de outrem em empresas com menos de 10 trabalhadores, sendo 98,5% do tecido empresarial nacional constituído por empresas do setor não financeiro que apresentam menos de 10 trabalhadores, assim como igualmente essencial seria incluir as mulheres precarizadas e sem vínculo contratual. Como tal, se os números apresentados, apesar de evolutivos, mostram-se insuficientes, depois de uma reflexão sobre os mesmos apercebemo-nos de que a realidade poderá estar desfasada e ser pior do que nos fazem querer.
         Importa agora salientar que um pay gap reduzido não é estritamente sinónimo de maior igualdade (dados da EIGE). De facto, a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho é uma determinante da “realidade” traduzida pelos números, dado que quanto menor a sua participação menor será a diferença salarial verificada. Se, por um lado, países como a Itália apresentam uma taxa de disparidade salarial baixa, tal é em grande parte justificado pelo facto de uma significativa porção das mulheres não participar no mercado de trabalho. Por outro lado, países como Portugal exibem uma taxa de disparidade salarial média/elevada e, simultaneamente, uma participação da força feminina nas atividades profissionais e uma segregação profissional elevadas. As mulheres mais qualificadas enfrentam um universo repleto de homens e, apesar de serem em média mais qualificadas, tal não se reflete no salário auferido e nos cargos que ocupam. As suas competências não são exploradas em todo o seu potencial, pelo contrário, esta agrava a desigualdade, o que não deixa de ser paradoxal: uma mulher investe na sua educação e formação profissional em prol do seu futuro e sucesso no mercado e acaba restringida pelo “teto e paredes de vidro” que o seu país lhe impõe. É, então, suposto estimular as mulheres a optarem pelo caminho mais comum? Formarem-se nas áreas correspondentes aos setores menos valorizados?
         Em suma, resta-me apontar que se somente 30% da desigualdade salarial é explicada pelas estatísticas disponíveis, sendo necessário mapear, de forma abrangente, o trabalho da força de trabalho feminina nas suas múltiplas dimensões, e que os países da UE reconheçam a necessidade de estimular as vontades políticas para criar mecanismos de combate aos fatores culturais mais profundos que impulsionam e intensificam a permanência de muitos dos desequilíbrios entre géneros. Conhecer a realidade, ou seja, ter uma visão plena do retrato social assume-se assim um requisito mínimo fundamental para que seja possível construir políticas ajustadas e aptas para dar resposta às desigualdades salariais, que se assumem tão determinantes na autonomia e na vida das mulheres, caso contrário, as políticas não passarão de uma proclamação bem-intencionada, mas vazia.

         Andreia Amorim

[artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Economia Portuguesa e Europeia” do 3º ano do curso de Economia (1º ciclo) da EEG/UMinho]

Sem comentários: