domingo, 16 de novembro de 2014

Economia Paralela: da fraude de milhões ao pequeno desvio ocasional

A dimensão da economia paralela num país dá-nos a ordem de grandeza da crise social, e não somente económica, do país. Ela é uma preocupação transversal à sociedade portuguesa. Ao mesmo tempo que se reivindica o seu fim no cartaz de manifestação, está nas preocupações do Governo ao analisar a política fiscal. Muitos reivindicam contra ela, vários declaram ou fingem combatê-la e alguns manipulam e controlam a sua existência e os seus grandes benefícios.

Ela tem vindo a crescer entre nós, facilitada pela livre circulação de bens e serviços e pela desmaterialização de boa parte das transações comerciais, mas também pela lentidão da justiça, pelas limitações de eficiência do aparelho tributário, pelo aumento contínuo da carga fiscal, do desemprego e dos “biscates” para poder sobreviver. Da fraude de milhões ao pequeno desvio ocasional.

Perante a dimensão da crise social, não surpreende o facto de que o valor da economia paralela em Portugal tenha crescido para os 44 mil milhões de euros, 27% do produto interno bruto oficial do país. Um montante de actividades que se pagassem impostos faria com que não tivéssemos “excessivo” défice no Orçamento do Estado (admitindo, com muita improbabilidade, que toda a sua actividade está aí reflectida).

Responsabilidade de cada um de nós? Responsabilidade do Governo, bode expiatório das nossas desilusões? Responsabilidade do sistema, declarada quando não conseguimos identificar as causas?

Quando, no início do presente milénio, analisámos a globalização, quando as perturbações da crise ainda não existiam, mas eram previstas, a partir da observação das suas características, concluímos da existência de uma importante actividade ilegal (droga, órgãos humanos, espécies protegidas, armamento, escravatura, etc.). Acrescentaríamos hoje uma forte dimensão da fraude e da corrupção, do branqueamento de capitais…

Os crimes socialmente mais relevantes são praticados por quem está profundamente integrado na sociedade, pela “criminalidade de colarinho branco”.

A crise de 2007 poderia ter conduzido a uma alteração dos modelos de comportamento, como pareciam indiciar algumas declarações políticas de então, mas o poder económico conseguiu subordinar o poder político, e tudo continuou parecido. Demonstram-no as políticas assumidas e a realidade dos paraísos fiscais e tributários, os offshores. Isto é, espaços legalmente constituídos e politicamente suportados para dificultar a criminalização nacional dos actos ilícitos, para aproximar actividades legais e a criminalidade económica internacional, para disfarçar a grande corrupção, para fluir o branqueamento de capitais, para implantar empresas-fantasma e reforçar a fraude fiscal.
E tudo isto está estreitamente associado a uma profunda desigualdade na distribuição do rendimento, assumindo frequentemente formas que qualquer moral do senso comum rejeitaria: as fraudes e crimes de uns (uma elite económica e política defraudadora) são pagas pelos que nada têm a ver com o assunto e, muitas vezes, se encontram no limiar que separa o viver do sobreviver: para que o capital financeiro não se desvalorize, desvalorizam-se as condições de vida das populações.

A tendência de aumento da economia “não registada” nas últimas décadas é, em primeiro lugar, resultado da integração do nosso país nesta dinâmica global da globalização. Contudo, tal não reduz a responsabilidade dos poderes políticos neste processo: durante grandes períodos tem havido uma cumplicidade e envolvimento nessa dinâmica internacional, facilitou-se o controlo de importantes segmentos do Estado pelo poder económico. A crise acelerou as tensões existentes e aumentou as desigualdades sociais no nosso país.

Neste contexto, foi-se assistindo nacionalmente a um conjunto de atuações de curto prazo, mas duradouras, que corroeram a confiança entre o Estado e os cidadãos. Quando ela se rompe, ou continua destruída, a incerteza aumenta, as relações sociais enfraquecem-se, a ética degenera e os desonestos reforçam o seu poder, porque ficam em melhores condições de “vencer a concorrência”.

E há razões para essa quebra de confiança. É importante reforçar que a corrupção, a fraude fiscal e o crime económico-financeiro são menos combatidos que os “crimes de rua”, que o não cumprimento de obrigações de muitas famílias por estritas razões de sobrevivência. As desigualdades na distribuição do rendimento agravam-se obscenamente.
Quanto às responsabilidades de cada um, elas são muito diferenciadas. Há quem canibalize, quem viva e quem sobreviva.

O Homem deveria ser a razão da actividade económica, mas quem anseia respeito e dignidade tem de procurar substituir o Estado-mercado pelo Estado-nação.
Só em democracia se reduz a economia “não registada”, mas não acontecerá enquanto o poder político estiver exclusivamente subjugado à dinâmica económica, aos “mercados”.

Susana Costa

[artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Economia Portuguesa e Europeia” do 3º ano do curso de Economia (1º ciclo) da EEG/UMinho] 

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