sábado, 14 de novembro de 2020

Covid-19: O início do fim de uma era global?

A pandemia causada pelo vírus SARS-Cov-2 trouxe bloqueios que fecharam fronteiras e interromperam o comércio internacional. Contudo, mesmo antes da pandemia, a globalização já se encontrava “em apuros”. O sistema aberto de comércio que todos conhecemos e que dominou a economia mundial durante décadas foi prejudicado pela crise financeira e pela guerra comercial Chino-Americana, trazida pelo ex-presidente Donald Trump, que misturou preocupações sobre empregos de “colarinho azul” e o capitalismo autocrático da China, com uma agenda mais ampla de chauvinismo e desprezo por alianças. A pandemia não será o início do fim da era global, mas não se espera que a reabertura das economias nos traga um mundo despreocupado, de movimento desenfreado e livre comércio como no passado.

É quase certo que a pandemia politizará as viagens e a migração e consolidará uma tendência à autossuficiência de cada país. Essa alteração introspetiva enfraquecerá a recuperação, deixará a economia vulnerável, levando à instabilidade geopolítica mundial. Se olharmos para o comércio internacional, a comida ainda está a ser transacionada, a Apple insiste que pode lançar iPhones a preço recorde e as exportações chinesas têm-se mantido até agora, impulsionadas pelo aumento de vendas no setor dos materiais de saúde. Porém, o efeito geral é selvagem e espera-se uma queda de um terço no comércio mundial.

Exemplificando com a cadeia global de produção do setor do vestuário, notamos que, apesar da etiqueta dizer “Made in Taiwan”, a mesma engloba partes de outros países. As fábricas chinesas viram interrompida a produção de fechos e botões devido à pandemia, o que significa que os itens não foram transportados para o local de montagem, impossibilitando as fabricas em Taiwan de terminar a produção, tendo então de cancelar as encomendas de algodão na Índia, enquanto no ocidente os consumidores viram as políticas de “lockdown” impossibilitá-los de chegar às lojas para adquirir o produto. Segundo dados do US Census Bureau, o consumo de vestuário nos EUA baixou cerca de 73,5% em abril de 2020 face ao mês anterior. Podemos concluir que a baixa procura no ocidente gerou milhões de desempregados nos países de mão-de-obra barata. Todavia, caso exista a transferência do setor trabalho-intensivo para os países desenvolvidos, este não irá gerar empregos, sendo a mão-de-obra substituída por tecnologia em fábricas cada vez mais automatizadas.

A globalização permitiu que empresas, produtos, ciência e tecnologia se movessem além-fronteiras. De 1990 a 2008, o valor gerado pelo comércio de bens e produtos cresceu de 39% para 61% do PIB mundial, segundo dados do Banco Mundial. Este boom da globalização permitiu a milhões de pessoas dos países em desenvolvimento deixar a pobreza, ao passo que no Ocidente as pessoas tinham direito a bens e serviços mais baratos. Em todo o caso, segundo o FMI, o PIB global irá diminuir cerca de 4,9%, face a 2019. No mundo ‘pós-Covid’, alguns elementos da globalização afetados pela pandemia podem não voltar ao que eram. O mundo foi de inteiramente integrado para desintegrado. Mas a pandemia não irá ser o fim da globalização, a pandemia pode apenas acelerar a “desglobalização”.

Estamos numa altura em que o comércio livre ficou fora de moda e o protecionismo começou a aumentar. O número de intervenções no comércio, como, por exemplo, tarifas e subsídios, está a aumentar cada vez mais. As multinacionais, ao analisar os desafios da pandemia, chegaram à conclusão de que deveriam ser menos globais e mais locais, de forma a combater as vulnerabilidades das cadeias de produção internacional a este tipo de disrupções inesperadas. A divisão entre estados não pode e não deve tornar-se o novo padrão. A pandemia pode acelerar algumas coisas que já estavam em marcha, tornando-as irreversíveis. Poderá, igualmente, mudar o curso da história. Ninguém sabe, de facto, o que trará o amanhã. Há que ter cuidado com os futurologistas. O nosso amanhã será moldado pelas decisões que as nossas sociedades tomarem hoje.

A Covid-19 não condenou irreversivelmente a globalização. Veio, sim, ensinar-nos que a cooperação é fundamental para que todos possamos sobreviver. A regulamentação do comércio internacional poderá precisar de ser revista e fortalecida. Da mesma forma, o papel das Nações Unidas, da União Europeia e da OMS deverá ser reavaliado e a sua eficácia deverá ser aumentada. Vamos esperar pelo melhor.

 

Luís Filipe Martins

[artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Economia Portuguesa e Europeia” do 3º ano do curso de Economia da EEG/UMinho]

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